Numa dessas tardes qualquer, passando pelos inúmeros corredores da Escola Municipal Luzia Laudelina, enquanto os meninos se contorciam para burlar o cerco da vigilância ostensiva do trio 'parada dura' formado por Zeca, Marcos e Clodoaldo, parei para ouvir os ‘lamentos’ do meu companheiro de trabalho Professor Lucenildo Vasconcelos, sobre o desinteresse dos alunos do 6º e 7º anos, em nossa disciplina (Geografia), sobre a qual o meu colega Professor fez um ‘desabafo’ perguntado qual seria a finalidade de ensinarmos a disciplina de Geografia para esses alunos que aparentam estar surdos aos nossos apelos e mudos diante dos nossos questionamentos (isto é, nossas provas).
A partir desse ‘desabafo’ do Professor Lucenildo, decidi compartilhar aqui no blog, um texto de Sousa Neto (1998) no qual ele reforça a necessidade do ensino de geografia, associando-o a realidade vivenciada em João Pessoa, que pode ser perfeitamente aplicada ao nosso município de Arara.
Das coisas sem serventia, uma delas é a geografia*
A Geografia é um desses negócios chatos que inventaram para ser a palmatória intelectual das crianças. Não dá prazer nenhum brincar de ser recipiente de nomes difíceis e ainda ter que repetir tudo certinho na hora das provas. A tortura geográfica, comum na maioria das escolas, é um exercício constante de ver o mundo de coisas, decorar o máximo e não aprender nada. São aquelas palavras cheias de nós consonantais que, vez por outra, o sujeito tem que repetir lá na frente, correndo o risco de se engasgar com uma montanha e ser motivo de deboche a semana inteira.
A utilidade que a criança vê em aprender geografia é a mesma que tem o aquecedor do Lada, apropriado para derreter neve, no nordeste brasileiro. No fundo, é uma violência desmedida da sociedade inteira contra a meninada que queria mesmo era brincar e fazer coisas divertidas. Ao invés de sentar para ouvir assuntos estranhos à sua vida, talvez a criança preferisse conversar sobre sua casa com aqueles terríveis conflitos de espaço, ou sobre o bairro com suas plenas de lembranças, ou da cidade com seus atrativos e desafios.
A infância para passear é uma reivindicação permanente, um outdoor estampado na testa de milhares de meninas e meninos. Botar os pés no chão e sai por aí conhecendo lugares: andando, olhando com admiração e medo a loucura das construções adultas, sentido o cheiro das árvores e da fumaça das fábricas, tateando vitrinas como muros impenetráveis, ouvindo o rugir dos sapatos apressados nas horas de pique das praças centrais. Todavia, como diz Rubem Alves, a infância é uma coisa inútil, assim como tudo mais nesta sociedade da produção e do consumo, onde a criança só vale enquanto promessa de boa fortuna.
A Geografia que se aprende na escola, aparentemente inútil, tem uma utilidade ímpar porque produz uma enorme massa informe de alienados. As pessoas não sabem que o espaço em que vivem tem um sentido que não aparece, porque detrás dos objetos sem história há histórias que desconhecemos. É que estávamos pensando no Himalaia enquanto o serviço de transportes coletivos em João Pessoa foi pensado para enriquecer os empresários e servir mal a população sem rodas.
Em uma “cidade boa para se viver”, talvez não seja de bom tom usar da Geografia para perceber favelas pipocando aos quatro cantos, ou para demonstrar que é possível de um mesmo ponto na verde “ Paris brasileira” – o Bar da Pólvora – admirar o pôr-do-sol e ver o lixão do Roger, ou para entender a origem dos “pegas” desiguais na Epitácio Pessoa entre os carros importados e as carroças puxadas a burro. O mesmo espaço comporta jegues e jatos.
As pessoas podem até não acreditar, mas a ciência Geográfica tem uma utilidade que poucos conseguem ver, pois um dos papeis que cumpre é justamente o de cegar a sociedade, desde a infância, de uma leitura da produção social deste espaço cheio de contradições. Por outro lado, como em tudo mais, o fazer científico só serve quando feito por prazer, coisa esquecida nestes tempos cabeludos em que viver para a felicidade é quase um crime, parafraseando Brecht. A Geografia, assim como a criança, é um perigo para os homens sérios que fazem do lucro seu sentido existencial, porque no meio da brincadeira ela pode deixar muitos reis completamente nus.
*SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. Aula de geografia e algumas crônicas. 2ª Ed. Campina Grande: Bagagem, 2008.
Me amigo e “companheiro de luta” Prof. Gregório, fico feliz e grato pela preocupação de repudiar sobre minha indignação e insatisfação pelo resultado que o modelo brasileiro de educação nos impõe. Uma marginalização da educação, uma maquilagem que nos torna incompetentes até o ponto que não nos repudiamos.
ResponderExcluirPela frase que enuncia seu texto procurei algumas respostas que serão, até para nós, gratificantes ou “tranquilizantes.”
“Muitos ainda acreditam que a geografia não passa de uma disciplina escolar e universitária descritiva, que fornece descrições “neutras” ou “desinteressadas” sobre o mundo: o clima Ásia de monções, o relevo da Europa, os rios do Brasil, os fusos horários da Rússia, etc. É como se existisse uma enumeração de assuntos – relevo, clima, vegetação, rios, população, agricultura, cidades, indústrias – que são estudados na mesma seqüência para todos os continentes e regiões.
Contudo, a despeito das aparências, a geografia não é um saber sem utilidade, no qual apenas se memoriza um amontoado de informações. Na verdade, ela é útil para a vida prática e interessa bastante a todos os cidadãos. Pois a geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Isso não significa que ela só sirva para conduzir operações militares; ela serve também para organizar territórios, para exercer o poder de Estado sobre um espaço, para que as pessoas aprendam a se organizar no espaço para nele atuar.
Como verifiquei seu artigo de brilhante entusiasmo, para os que procuram um futuro menos pertubador, contribuo aqui com palavras que servirão para quem procura satisfazer ou energizar seu futuro acadêmico geográfico.
Como disse Ives Lacoste: Geografia: Isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra.