quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Para que serve a Geografia?


Numa dessas tardes qualquer, passando pelos inúmeros corredores da Escola Municipal Luzia Laudelina, enquanto os meninos se contorciam para burlar o cerco da vigilância ostensiva do trio 'parada dura' formado por Zeca, Marcos e Clodoaldo, parei para ouvir os ‘lamentos’ do meu companheiro de trabalho Professor Lucenildo Vasconcelos, sobre o desinteresse dos alunos do 6º e 7º anos, em nossa disciplina (Geografia), sobre a qual o meu colega Professor fez um ‘desabafo’ perguntado qual seria a finalidade de ensinarmos a disciplina de Geografia para esses alunos que aparentam estar surdos aos nossos apelos e mudos diante dos nossos questionamentos (isto é, nossas provas).

A partir desse ‘desabafo’ do Professor Lucenildo, decidi compartilhar aqui no blog, um texto de Sousa Neto (1998) no qual ele reforça a necessidade do ensino de geografia, associando-o a realidade vivenciada em João Pessoa, que pode ser perfeitamente aplicada ao nosso município de Arara.

Das coisas sem serventia, uma delas é a geografia*

A Geografia é um desses negócios chatos que inventaram para ser a palmatória intelectual das crianças. Não dá prazer nenhum brincar de ser recipiente de nomes difíceis e ainda ter que repetir tudo certinho na hora das provas. A tortura geográfica, comum na maioria das escolas, é um exercício constante de ver o mundo de coisas, decorar o máximo e não aprender nada. São aquelas palavras cheias de nós consonantais que, vez por outra, o sujeito tem que repetir lá na frente, correndo o risco de se engasgar com uma montanha e ser motivo de deboche a semana inteira.

A utilidade que a criança vê em aprender geografia é a mesma que tem o aquecedor do Lada, apropriado para derreter neve, no nordeste brasileiro. No fundo, é uma violência desmedida da sociedade inteira contra a meninada que queria mesmo era brincar e fazer coisas divertidas. Ao invés de sentar para ouvir assuntos estranhos à sua vida, talvez a criança preferisse conversar sobre sua casa com aqueles terríveis conflitos de espaço, ou sobre o bairro com suas plenas de lembranças, ou da cidade com seus atrativos e desafios.

A infância para passear é uma reivindicação permanente, um outdoor estampado na testa de milhares de meninas e meninos. Botar os pés no chão e sai por aí conhecendo lugares: andando, olhando com admiração e medo a loucura das construções adultas, sentido o cheiro das árvores e da fumaça das fábricas, tateando vitrinas como muros impenetráveis, ouvindo o rugir dos sapatos apressados nas horas de pique das praças centrais. Todavia, como diz Rubem Alves, a infância é uma coisa inútil, assim como tudo mais nesta sociedade da produção e do consumo, onde a criança só vale enquanto promessa de boa fortuna.

A Geografia que se aprende na escola, aparentemente inútil, tem uma utilidade ímpar porque produz uma enorme massa informe de alienados. As pessoas não sabem que o espaço em que vivem tem um sentido que não aparece, porque detrás dos objetos sem história há histórias que desconhecemos. É que estávamos pensando no Himalaia enquanto o serviço de transportes coletivos em João Pessoa foi pensado para enriquecer os empresários e servir mal a população sem rodas.

Em uma “cidade boa para se viver”, talvez não seja de bom tom usar da Geografia para perceber favelas pipocando aos quatro cantos, ou para demonstrar que é possível de um mesmo ponto na verde “ Paris brasileira” – o Bar da Pólvora – admirar o pôr-do-sol e ver o lixão do Roger, ou para entender a origem dos “pegas” desiguais na Epitácio Pessoa entre os carros importados e as carroças puxadas a burro. O mesmo espaço comporta jegues e jatos.

As pessoas podem até não acreditar, mas a ciência Geográfica tem uma utilidade que poucos conseguem ver, pois um dos papeis que cumpre é justamente o de cegar a sociedade, desde a infância, de uma leitura da produção social deste espaço cheio de contradições. Por outro lado, como em tudo mais, o fazer científico só serve quando feito por prazer, coisa esquecida nestes tempos cabeludos em que viver para a felicidade é quase um crime, parafraseando Brecht. A Geografia, assim como a criança, é um perigo para os homens sérios que fazem do lucro seu sentido existencial, porque no meio da brincadeira ela pode deixar muitos reis completamente nus.

*SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. Aula de geografia e algumas crônicas. 2ª Ed. Campina Grande: Bagagem, 2008.